segunda-feira, 21 de junho de 2010

Ipê

.Era tarde nublada.

.João, fazendeiro desmantelado pelos vícios, membro de uma tradicional família de um qualquer vilarejo, pai de seis filhos, avô zeloso de três netos e marido insatisfeito decidira morrer tendo como testemunha um Ipê de sua propriedade. Levava consigo uma corda e uma cinta velha que firmava as rotas calças de fazendeiro nas mãos.

.Estava decidido. Nada que tencionara no alvorecer da vida e ao longo dos anos concretizara-se. “Destino filho de uma puta”, entre dentes, com uma das mãos na calça, evitando um iminente tropicão.”Culpa tua, casei com mulher feia, cai em bebedeira e perdi alqueires da família por tua culpa” Só não culpou Deus por ser blasfêmia e por ser cristão, amem, ou como dizia o padre Pedro, do vilarejo construído sobre os domínios do fazendeiro, “um opróbrio”. Leu certa vez em um livro e achou a tal palavra mas quem trabalha na lavoura não tem tempo para pegar do dicionário. Se o pedante do padre lha dirigisse, manchar-lhe-ia a honra. Que fique o destino o injuriado!

.Amarrou a corda junto à cinta e nivelou aquilo que se parecia o nó de uma forca e amarrou-a num galho do Ipê amarelo. Ajustou-a no pescoço. Subiu numa pedra. Olhou ao chão e ao horizonte que mostrava o cinza e agourento céu, prenunciando com os roufenhos trovões a presença daquela morte besta que se aproximava. O farfalhar do Ipê dava sinais de pulsação. Fechou os olhos para o nada. Saltou...

.“Um opróbrio!”

*

.João saiu da faculdade com tramóias de deixar qualquer malandro com inveja. Guardava consigo algumas citações de autores clássicos e da bíblia apenas para impressionar as estudantes e as filhas dos fazendeiros amigos de seu pai. Pedro, seu condiscípulo e amigo de trapaças o instruiu com muita aguardente vagabunda, apresentando-lhe a roda das damas e dos valetes e as alcovas de cortesãs francesas. Toda a nata da boemia. Em uma comemoração de fim de ano, voltaram para casa do Dr. João, pai do nosso Joãozinho e também médico do vilarejo.

.Neste dia, João e Pedro voltaram com lagrimas de pinga velha. Um pastorzinho vendedor de queijo os trouxe levados de carroça, bem no meio da comemoração. Coisa de vexar foi Ritinha, moça bonita com a qual João tencionava se casar, tê-lo acudido quando o jovem beberrão cambaleou ao descer da carroça.

.Mas a festa continuou com o ânimo de Pedro, que não deixou que a zanga do Dr. João chegasse à festa. Quando os dois camaradas se curaram da ressaca, foram ter com Ritinha e Carlotinha, esta última também filha de médico, sem graça mas bonitinha para os rapazotes.

.E porque o tempo não obedece senão à própria natureza que o rege, choveu. Ritinha era a prometida de João, mas assim não o quis o destino. No dia da festança, todos se molharam. Ritinha com pedro, já que moravam na mesma rua, fugiram da chuva juntos, assim como todo o povo presente, enquanto Carlotinha esperava o pai chegar para levá-la. João fez-lhe companhia debaixo daquele aguaceiro, à beira de estrada. A roupa da moça, molhada, mostrava-lhe os dotes que a puberdade acaba por moldar, tal como o caráter. E já que o caráter do João não era digno de admiração, nada pior que umas mãos bobas nos seios de uma donzela incauta.

“Vai ter que casar!” retumbou o pai, que o pegou de surpresa.

.Casaram-se. João a contra-gosto, mas Carlotinha revelou-se uma mãe pouco afeita aos caprichos do ofício. Mandava nas criadas, as quais cuidavam de seus seis filhos, tal como dizia a regra das mães daquele tempo. Comiam, bebiam e pariam.

.Ritinha frustrou-se com a traição inusitada de João e casou-se com Pedro. Mas este não desatou o laço da amisade com seu velho companheiro de bebedeiras. Caiu na gandaia. Acontece que Pedro parou e tomou tento. Largou a garrafa e o matrimônio e entrou num seminário, passou a ser o já apresentado padre do vilarejo. Ritinha virou cocote, cresceu e bancou seu próprio estabelecimento. Nem por isso deixou de desfiar a trama que teceu com o Padre, que ia ao seu antro para dar conselhos às madames, dizem as carolas e beatas, cegamente confiantes na santa benevolência do regenerado padre.Enfim!

.João perdeu quase tudo em jogo. Pai morreu de desgosto e de forca, não como seu filho, sob os olhos do Ipê, mas num banheiro de botequim.

.Mal casado, endividado e pobre...Oh vida malfadada!

.Foi ter com o Ipê

*

.Caiu e chapinhou na lama. A forca apertava-lhe a garganta. Um galho estorricado ao chão.

“Oh homem, um opróbrio!” ouviu João. Era o Ipê.”Destino teu foi nascer. Só! Nenhum acontecimento na vida é pré determinado e inalterável, nada acontece porque está escrito. Vá cuidar de teus filhos e de tua esposa, que está gorda e mal-amada. Teus netos terão o mesmo fim que teus filhos se não mexer esta bunda!”

.Arre!

Se era o Ipê ou não, isso não o sabe João, mas que bebeu para amortecer a queda, disso se lembra.

.João largou a cachaça e mexeu nas obras de teu antigo pai. Depois desta,nunca mais quis ter com o Ipê. Não o arrancou, pois lhe ficou a lembrança daqueles erros que cometera. Suntuoso Ipê, sim, que de semente erguera-se para tocar o pio céu da fazenda do regenerado João, marido fiel e avô zeloso. João também nascera das agruras

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