segunda-feira, 21 de junho de 2010

Descapetamento

.Haja o que houver, há sempre um milagre que nos condiciona.

.Quando me formei foi maravilhoso. Festa, presentes, telefonemas de amigos distantes. Trabalho, ótimo! Tempo preenchido por uma excelente e eficaz vontade de crescer, aliada a um espírito empreendedor que une os diversos patamares de uma boa empresa. Bom salário, entrevistas, negócios, viagens, empréstimos, compra de imóvel, carro, jantar com o patrão, mulher do patrão, a filha do patrão... anos com a filha do patrão, meus filhos, dores de cabeça, sogra, sogro patrão, calvície, estresse.

.Mas hei de falar de minha mais nova empresa, cujo patrão não dá as caras em congressos nem em reuniões. Basta apenas que seus empregados levem seu nome para onde for. É certo apenas que estou bem hoje. No entanto, hei de dizer meu encontro com ele para que possa ter uma noção da santíssima e magnífica pessoa do meu patrão.

.Era numa tarde, engarrafamento em uma das principais vias metropolitanas, atrasado para uma importantíssima reunião na qual seriam decididos os reais caminhos para sua manutenção. O Sol fustigava aquelas diminutas formigas, carros em roncos bravios. Minha camisa estava molhada. Recebo uma mensagem no celular “Teu filho reprovou e tua filha foi suspensa. Traga-me os papéis que devo assinar para divisão de bens. Papai quer a gravata dele de volta.” Toca o celular, “você está uma hora atrasado” tonitruou a voz de meu sogro através do aparelho” “estou engarrafado” “perdemos vinte mil numa patifaria, por um desleixo seu, estamos falidos!” .Desligou. Sai em meio aos carros e deixei o meu parado, aberto. Comprei um casco num bar próximo e voltei. A garrafa esvaziou-se em poços goles. Queria eu entrar e ficar naquela garrafa, pensei, engarrafado sim.

.Minha camisa ensopou. Pensei num jeito de reverter a situação. Mal! Era tarde. Súbito parei. Convulsivamente olhei em redor. Nada, nem carros. Homens. Vi o céu. Senti a presença dele e em mim estava o fogo que me ardia os olhos. Se eu pudesse abrir aquela via como o mar apenas com o toque de um graveto próximo, sem cajado, nem praga, nem povo. Graveto avulso naquele oceano de carros sujos e gente ensandecida! Não! Afogava-me naquela onda de fumaça preta. Quis correr, não pude. Estava desesperado. Parei atônito e olhei para aquela luz inclemente do sol das duas. Olhei, sem piscar. Os raios fustigavam-me os olhos como chibatas e ferro derretido, crestando minhas retinas. Senti meus olhos e chamas tal qual a dor das criancinhas de Esparta, deformadas, jogadas de um penhasco e as mães que choravam os corpinhos morféticos de seus filhos. Santos corriam as unhas nos próprios rostos um nu no deserto, boca suja de insetos, outro queimado pela própria igreja que o canonizou, e outro com uma mó no pescoço e uma fila de santos e anjos se flagelando e sendo flagelados. Senti o peso das guerras, das chagas e das novenas dos fiéis. Senti o horror daquele momento, do diabo que me puxava a perna. Queria eu olhar para os céus. Vi-os e em meio a eles Deus.

“.Abra uma igreja minha! Toque uma emissora de TV e uma rádio em meu nome”.

Sim, o que de fato fiz. Hoje conheço o promissor trabalho daqueles que levam as palavras do Senhor para todos os cantos. Minha empresa jamais falirá, sim. Está convidado, leitor, a uma sessão de descapetamento que mudará tudo em sua vida. Basta contribuir com pouco de seu mísero salário. Este voltará, pode ter certeza, em uma gleba no conjunto habitacional do reino de Deus.

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