terça-feira, 20 de julho de 2010

Gota

Gota
(tema: desespero)
parte (2/5)

Suposto Segundo Dia

Abri os olhos lentamente. Foi uma noite negra, sem sonhos. Não pude me dar ao luxo de imaginar que os eventos da noite anterior seriam um mero sonho. Sabia que eram reais. Ao mesmo tempo em que sentia a falta de um dedo, percebia como as sensações de entorpecimento do dia anterior também voltavam.
Antes que pudesse me pegar novamente encarando a porta, esta se abriu. Minha amiga acabava de voltar com a mesma expressão e passo firme.
Em sua fineza e extrema elegância apalpou meu corpo. Seu toque leve era aromático. Realmente agradável. Via seus movimentos rápidos em câmera lenta, formando leves borrões conforme se mexia. Cheguei a pensar que veria novamente aquela brilhante tesoura. Mas não a vi. Esperei palavra e não a tive. E quando desisti de querer, ela agiu. O toque médico foi vigoroso. Meu pé estava sendo decepado milímetro a milímetro. Comecei a observar aquilo e me fixei. Meus olhos em extrema atenção. Minha pele numa tentativa frustrada de se arrepiar, apenas transcorria em um leve fluido sem textura um suor falhado e sem graça.
Minha mente não queria estar ali e divagou. Preferi ficar com os olhos e mesmo sem poder pensar apenas vi.
O sangue escorreu de forma lenta e sempre sendo bem estancado. Aos poucos o pé se desprendeu.
Para conter o sangue várias toalhas foram postas e um curativo final me foi dado de presente.
Meu pé trafegou em um balde e alegremente correu lado a lado com aquela mulher até ambos se ausenta-rem do quarto.
Não ganhei o olhar carinhoso e me senti levemente decepcionada. Talvez devido à hemorragia desmaiei, ou apenas dormi lentamente.
Não voltei a acordar. Na verdade, em um grito o mundo voltou a mim. Pequenos fios de arame farpado era o que sentia. Percorriam a carne por dentro da perna, numa voracidade predadora. Alcançaram meu peito e, numa explosão elétrica, cravaram meus pulmões contra o colchão.
Faltava-me ar e razão. Ao mesmo tempo em que sentia dor não sentia nada. Era um sentir não sentindo, um não sentir sentindo. Fiz o que pude. Ou seja, esperei. A dor continuou, revivendo já a dor do dia ante-rior e fazendo com que os dois cortes ressoassem.
Nesse dia não ouvi nada, apenas vivi aquele momento. Tamanha dor me pôs a dormir. Não sei se sonhei. Embebedei-me com o cheiro do meu próprio sangue. Se sonhei, o mundo era feito de ferro, com os céus avermelhados e carregados com nuvens. Chovia e eu me molhava. Era tudo triste e desolado. Apenas existíamos as nuvens, o ferro, o vermelho e eu. Um mundo limitado por fora e infinito por dentro.

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