quarta-feira, 7 de julho de 2010

Gota

Seguindo o informe sobre os textos de Julho, postarei este dividido em 5 partes, uma por semana.

Gota
(tema: desespero)
parte (1/5)

Suposto Primeiro Dia

Barulho de gotejar. Barulho forte de gotejar. Logo chuva forte, ventos e trovões.
A janela não estava distante, mas o entorpecimento ainda era intenso. Não dava para levantar. Meus braços friamente repousavam ao lado do meu corpo, como pequenos estiramentos sem vida.
Trovejar novamente e talvez mais duas ou três vezes.
Fazia quanto tempo? Uma hora? Acordar foi um ato lento e degenerativo. Conforme os olhos abriam, a mente divagava e se perdia. Aquele quarto tinha um cheiro confortável. Era tudo que podia definir no momento.
Pensar no que aconteceu e não pensar era a mesma coisa. Todavia, alguma força era necessária.
A porta abriu.
Era ela.
Caminhava num passo firme, barulhento, nada discreto. Seus cabelos presos com um laço, seu rosto triste e impassível. Era tão difícil me concentrar que não liguei fato algum. Nem me questionei o porquê de estarmos ali.
Sua aproximação foi lenta e num ritmo tão perfeito que mal senti seu calor próximo a mim.
Quando suas mãos se estenderam, meu braço foi erguido, o direito, que menos uso. Era uma imagem de transcendência espectral. Via meu corpo alçado e não o sentia.
Acredito que ela me segurou ao mesmo tempo de maneira firme e delicada. Com toda compaixão e cari-nho esticou meu dedo anelar. Com uma tesoura de ponta, toda metalizada e brilhante, cravou-a na pele lívida e num gesto simples arrancou meu dedo.
Não senti dor. Não me preocupei. Na verdade, não soube o que estava acontecendo. Ela enfaixou minha ferida de tal forma que sangrou muito pouco. Meu braço foi posto delicadamente sobre a cama e ao sair, seu olhar se iluminou num carinho materno, ainda que mantivesse toda a inexpressividade física.
Conforme meus sentidos retornavam senti o formigamento, a coceira e por fim uma tênue dor. Não me mexi e esperei. Pouco a pouco minha mente voltava a ser como de costume.
Acho que dormi um pouco ou talvez tenha apenas me perdido em pensamentos. Ao voltar, senti aquele quarto mais vivamente. Assim como a dor lacerante que corria em meu braço. Notei que estava amarrada, pelos pés e pelo pescoço. Um pequeno movimento e sentia que a corda ralava minha garganta e o ar fal-tava.
Procurei um pouco de conforto e descobri várias maneiras de sentir dor. O dedo agora sangrava um pouco e me vi limitada pela hemorragia. Meu desespero era pequeno, talvez nesse momento minha razão não fosse capaz de questionar a sanidade de toda a situação.
Percebi que a chuva havia diminuído. Um pouco de gotejar esparso. Gota. Silêncio. Gota. Silêncio. Gota. Vento balançando algumas árvores e o céu já escuro. Olhei para a porta e esperei. Esperei vê-la aberta, e aos passos firmes, voltar minha companheira. A porta não se abriu. Esperei mais. Esperei até adormecer.

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